No campo, em uma casa isolada, cercada apenas por plantações extensas de girassóis, entre cercas de alguns animais domésticos, uma senhora por volta dos 60 anos estava a observar da janela da cozinha enquanto lavava a louça, o dia claro e azul: poucas nuvens no céu, brisa sutil, e alguns pássaros a cantar. Quando percebeu um jovem rapaz se aproximando a cavalo ao longe na estrada que leva à cidade pequena, vizinha desse sítio. Ela parou e estreitou os olhos para que a visão chegasse mais ao longe e então o reconheceu. Ela largou a louça cheia de sabão e saiu gritando pela casa “Ele voltou! Venham logo, ele voltou!” e então abriu a porta de entrada e saiu correndo em direção ao rapaz que já estava adentro do sítio e desmontava do cavalo, logo atrás saiu uma mulher mais jovem, e três crianças de dentro de casa ao encontro do rapaz e vindo do celeiro um senhor com mais de 65 anos.
-Tu voltaste! - a senhora abraçou o rapaz - Não imaginas o quanto estou contente de teres voltado!
E então as crianças o abraçaram sorrindo as pernas do rapaz, e a mulher mais jovem se aproximou e o abraçou demorando o máximo que pôde.
O rapaz sem dizer nada, apenas sorria e retribuía os gestos de carinhos recebidos. Por último o senhor o encarou sério, todos o olharam sem entender a reação e então ele abriu um largo sorriso e abraçou o jovem rapaz também.
-Venha! Tu estás cansado? Queremos saber de tudo que passaste, fazerei o melhor café para ti.
Todos entraram e foram para a sala de estar da grande casa de madeira: o senhor logo ocupou uma cadeira de balanço que ficava mais ao canto da sala e pegou um charuto. O rapaz recém chegado ocupou uma poltrona surrada, a moça sentou no sofá e as crianças sentaram ao chão perto do rapaz.
-Papai, papai! Sentimos saudades! - disse um garotinho
-Até pensei que não voltarias, isso me deixou mui triste - disse uma menina um pouco maior que o garotinho.
-Eu temi muito por ti, e claro, pelas crianças que tenho certeza que não suportaria outra perda - disse a mulher.
O rapaz sorriu, mas em seu olhar carregava uma tristeza, ele suspirou como para dizer algo mas apenas abaixou os olhos.
-Suponho que não a encontraste - disse o senhor com a voz grave quebrando o silêncio - visto que voltaste sozinho!
-Irei contar tudo a vocês, apenas esperando mama para juntar a nós!
As crianças começaram a contar as desventuras ao rapaz, e alguns minutos depois a senhora adentrou a sala de estar com uma bandeja que continha uma xícara de café e biscoitos caseiros, e então sentou-se ao lado da mulher mais jovem e disse:
-Alex, estamos mui contentes com tua chegada, mas quero que saibas que ficamos mui aflitos durante esse tempo. Assim como perdemos Lucinda são suportaríamos perder-te também. Fomos contra tua partida, mas entendemos a sua necessidade, agora sem mais delongas, queremos que conte-nos tudo que passaste e porque voltaste sem ela.
-Sei que não foi fácil para vocês - ele pegou xícara de café e saboreou um longo gole depois recolocou a xícara na bandeja - Mas entenda que fiz pelas crianças e, com certeza, por mim, eu sabia que vocês ficariam bem e não precisariam de mim, mas não foi fácil minha busca e eu tive que enfrentar muitas situações que ninguém jamais passou ou imaginou que poderia existir, mas sem mais delongas eu contarei.
Ele pegou novamente a xícara sob os olhares atentos de cada um e um biscoito, no silêncio ouvia o som da mastigação, quando enfim terminou de comer, ele começou:
“Quando Lucinda sumiu, e deixou aquele bilhete vago de que estaria buscando redenção, eu não acreditei e jurei que tivesse sido forçada a deixar aquele bilhete sob ameaça, por isso não medi consequências do que estava por vir. Entenda, eu sou apaixonado por ela e não suportaria perdê-la, ainda mais sob maldades de pessoas. Não fazia ideia por onde começar, mas arrisquei pelas redondezas.
Sei que naquele dia dei a entender que fui direto para cidade, mas em determinado ponto da estrada, eu pensei que um sequestrador não a levaria para cidade e sim, para algum lugar mais isolado. Veja: eu realmente estava convicto que era um sequestro, algo me dizia que era e confiei em meu instinto. Então dei meia volta e fui em direção a floresta que fica além de nossas plantações de girassóis.
Apesar daquele dia estar claro como hoje e nenhum pouco amedrontador, olhar para dentro da floresta me dava calafrios, não tinha nada demais, apenas árvores e arbustos, mas fiquei por um tempo hesitando até finalmente lembrar que Lucinda estaria precisando de mim. Desmontei Pangaré e não o amarrei, corria o risco de alguém roubá-lo de mim, mas não podia entrar na floresta com ele, seria difícil de caminhar e talvez, ele sentisse fome ou sede, e se eu sentisse, eu saberia me virar, mas o pobre cavalo não. O deixando ali, pelo menos as chances dele voltar para casa sozinho seria grande, mas também ele poderia me esperar enquanto pastava.
Finalmente entrei na floresta, estava tudo normal, mas meu corpo insistia em sentir calafrio. Fui passando entre árvores, pedras de vez em quando algum roedor fazendo barulho nas árvores. Quanto mais adentrava, mas sentia que estava descendo, era indício de algum rio por perto, e não sei por quanto tempo andei, mas minhas suspeitas estavam certas, e somente quando cheguei ao rio, percebi que estava com sede. Na verdade era um riacho, eu conseguia atravessar a outra margem apenas pisando nas pedras que havia no caminho. Tomei um pouco da água e analisei. Precisava me orientar, eu simplesmente entrei na floresta sem pista nenhuma, apenas seguindo meus instintos e corria risco sério de me perder ali, mas agora era tarde para me arrepender.
Segui o curso do rio até que percebi que o crepúsculo tinha chegado, eu no desespero de encontrá-la, não tinha pego nada para me preparar, eu fui muito imprudente em não ouvir vocês, ao cair da noite ou eu morreria congelado, ou seria caçado por algum animal noturno. E quando tudo parecia perdido e eu me culpando que então meus filhos ficariam sem mãe e sem pai por minha imprudência, eu percebi uma clareira perto da margem. Então segui uma pequena trilha e por uma bênção ou sorte havia uma cabana. Ela não estava em boas condições, parecia abandonada a anos: madeira velha com fungos, janelas sem vitrais e muita folha na varanda.
Apesar do lugar decadente, eu poderia me proteger de animais e do frio, com certeza essas cabanas têm lareira, então aproveitando os últimos minutos de claridade, recolhi alguns gravetos de madeira - é, gravetos, pois eu estava despreparado para conseguir lenha - e entrei. Como imaginei, a cabana tinha móveis, mas submersos em camadas de pó. A mobília era de madeira e tinha três cômodos: a cozinha, por onde entrei, um lugar que seria sala por conter apenas uma cadeira de balanço e uma lareira - bingo! - coloquei os gravetos e acendi uma pequena chama com meu isqueiro, ia demorar um pouco para a chama tomar corpo, aproveitei para ver o último cômodo: um quarto, apenas uma cama maltrapilha com um colchão muito surrado e muita poeira em cima.
Percebi que estava fazendo um grande esforço para enxergar as coisas e dei por mim que a noite estava chegando. Corri à cozinha e procurei por vela ou lampião no armário caindo aos pedaços que tinha ali. Encontrei um lampião e o acendi. Estava com fome, mas se existisse algum alimento ali, me daria com certeza uma intoxicação, então preferi ficar com estômago doendo mesmo. Fui para cama e quando deitei, foi perceptível à luz do lampião ver o quanto de poeira subiu. Não me importei e deitei mesmo assim e fiz uma reza para encontrar o caminho de volta, e por Pangaré. Estava sentindo uma culpa terrível por ter deixado o pobre cavalo na estrada, mas adormeci.
Adormeci, não sei por quanto tempo e então acordei de repente ouvindo risadas. Risadas? Quem poderia estar rindo aquele horário e naquele lugar? Levantei sorrateiro e fui até a sala onde havia uma janela - a lareira ainda estava acesa então não tinha dormido muito - e espiei, então vi: cinco mulheres, todas muito belas, mas o que mais me chamou atenção era que elas não tocavam o chão, estavam flutuando ou voando, porque havia nas costas luzes que eu não conseguia discernir, mas pareciam asas. Elas estavam atravessando a cabana, não estava vindo para cabana e então quando a última adentrou de novo na floresta, eu peguei o lampião do quarto e saí atrás delas.
Curiosidade era o que sentia, tinha sido novamente imprudente e saí para floresta no meio da noite atrás de moças que poderiam ser minha alucinação.
Eu estava a mais ou menos dez metros delas, estava perto demais, se elas olhassem para trás me veriam facilmente. Mas não olharam, elas riam e cantavam uma língua que desconheço, e eram muito bonitas suas vozes. Talvez eu estivesse hipnotizado, pois naquela perseguição, até me esqueci de Lucinda. E então elas saíram em um lugar onde havia um imenso lago, que refletia a lua crescente. E a margem do lago, sentada nas pedras e agora rodeada pelas moças eu a vi: Lucinda estava ali, sorridente e radiante, mas algo diferente estava nela, ela também tinha uma luz às costas.
Eu apaguei o lampião e me aproximei mais para ouvi-las, então ouvi a moça dos cabelos negros e crespos dizer ‘Vamos recuperar tudo que é nosso, é uma honra tê-la de volta’ e então a moça dos cabelos bem compridos e ondulados acrescentou enquanto segurava a mão de Lucinda 'estávamos ficando sem opção, você é a tutora e você que emana a energia para o equilíbrio de tudo isso’ e então a expressão da Lucinda mudou, ficou severa e ela respondeu: 'eu cometi um erro ao me unir com um humano, eu sei, essa união pode ter gerado descendentes fortes mas instáveis, poderá salvar a Terra em um piscar de olhos quanto destruir também, e sei que isso pode ter desestabilizado vocês, mas nessa parte, era para vocês terem evoluído, vocês precisam ficar independentes e se tornarem uma tutora como eu, mas restaurar equilíbrio em qualquer canto desta Terra'. As meninas sentaram sobre as pernas em volta de Lucinda e depois de uma pausa ela continuou 'eu voltei para que meus descendentes tenham a vida normal, como humano, para que não haja uma catástrofe, e para ajudar vocês a serem independentes.'
Uma das moças, alta e expressão severa disse 'você também tem uma responsabilidade, não coloque toda a culpa em nós' e uma outra mais mirrada, mas não menos bonita completou ‘e nós nos saímos muito bem, veja como estão as coisas por aqui’ elas olharam em volta e sorriram.
Eu que estava com as pernas dormentes de me permanecer imóvel, senti algo amarelo como uma poeira aproximar de meu nariz e então eu espirrei, de imediato, todas elas olharam para mim e então senti duas mãos ficarem em volta de meus braços, eu me sentia fraco e me deixei ser arrastado. Percebi que tinha sido uma outra mulher que também tinha um brilho nas costas, que me carregou até em frente de Lucinda e ela disse assim que me soltou ‘o encontrei espionando, joguei pó mágico nele para que ficasse fraco e não fugisse, acho que precisa o interrogar’.
‘Não preciso o interrogar, eu sei quem é, e o que estava fazendo, pena que ouviu o que não devia’.
Eu a olhei e perguntei o que era aquilo? Porque elas brilhavam? Mas a resposta que eu mais queria era: porquê me deixou.
As moças sentaram ao redor de mim, enquanto eu estava jogado no chão encostado em uma árvore, aquela poeira me deixou muito fraco e eu mal conseguia dizer algo, mas Lucinda me conhece bem, ela me respondeu tudo:
‘Sei que não fui completamente sincera contigo, eu me apaixonei e isso não é desculpa. Eu não podia viver contigo, a não ser que eu me rendesse e ficasse como humana, e assim fiz. Pois bem, sei que está se perguntando o que somos: somos fadas da Terra, esse brilho são nossas asas, é que com seus olhos materiais não as conseguem ver, apenas a essência de seu poder, que parece brilho. Eu parti por causa de nossos filhos, sei que escutou a conversa, mas vou explicar novamente: sou uma fada com estado de magia mais avançado, e uma fada tutora se unir a um humano, os filhos nascem híbrido, com poderes de fadas, mas perversão de humano, por isso parti, para que elas não soubessem de suas condições e se tornassem seres maus. Desculpa não ter te contado, desculpa ter mentido, eu cometi um erro grave e não sabia que isso poderia acontecer, agora que sei, preciso consertar’.
Nesse momento ela ergueu os braços, eu jurava que ia me golpear, e acabar comigo ali mesmo, mas então com mansidão ela ficou bem perto de mim, e com os olhos cheios de lágrimas, deixou a escolha em minhas mãos:
‘Eu não posso deixá-las mesmo sabendo que já são capazes manter o equilíbrio sozinhas, mas não há outra tutora, e você agora sabe demais.
Errei em te amar, e agora é o momento de consertar o erro’.
Ela se virou, todas estavam me olhando e eu entendi que era meu fim. Estava muito fraco ainda e não ia conseguir fugir, mas ela por um momento hesitou e me encarou novamente:
‘Eu vou esquecer isso e espero que você também, volte para casa e diga que estou morta, para que ninguém mais me procure e nunca, jamais conte o que sabe a alguém. Nós, fadas, temos uma missão que agora você sabe o que é, mas se souberem, o mundo virará um caos’ e uma das fadas, a interrompeu: ‘você vai confiar em um humano? Você sabe que não podemos, eles são traiçoeiros e não conseguem segurar a língua’ e então Lucinda disse sem nem olhar a outra fada: ‘Sim, eu confiarei. E se algo acontecer, que fique de lição para que nunca, jamais repitam o mesmo erro que eu’ e então ela me olhou ‘Você já sabe!’
‘Você precisa voltar para casa. Seus filhos precisam de você… para ensiná-los a serem quem não podem ser…' eu disse com muita dificuldade, mas elas tiveram paciência em escutar.
‘Não é questão de ensino. É questão de natureza! Eles tem perversidade…’
‘Se você me amou e confiou em mim, por que não pode confiar neles?’
‘Desculpe’ vi seus olhos encherem de lágrimas ‘eu sei que não devemos arriscar’
‘Eu não vou mentir para eles’ eu disse com muita dificuldade e ela me respondeu em sussurro ‘você os ama, e o amor cega. Se contar, pode acabar com a Terra’
‘Eu os amo sim, e confio neles. Não vou mentir…’
Então ela soprou algo em meus olhos e antes de adormecer gravei em minha memória aquele lugar, era um local intocado pelo ser humano, apenas montanhas, árvores intactas, o lago cristalino e a luz do luar refletida. Acordei na floresta perto da estrada, não sei se sonhei ou se foi real. Procurei Pangaré, que me aguardou fielmente onde o havia deixado e voltei para casa.
E no caminho refleti muito: sobre a informação que tinha em mãos, e sobre a verdade que eu estaria escondendo de meus filhos."
Alex parou de falar e tomou um gole do café que já estava frio. Todos os olhavam com curiosidade:
-Tu nos contaste esse segredo mesmo Lucinda pedindo que não contasse? - a moça mais jovem o questionou.
-Como disse: não sei se foi real ou não, mas ao ouvir tudo isso, sabe que é questão de princípio e amor, e agora o segredo não está mais em minhas mãos.
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