Sou filha única e sempre tive um ótimo relacionamento com meus pais, eles eram presentes na minha vida, e sempre faziam programas em que eu pudesse estar inclusa. Quando completei 12 anos minha mãe ficou muito doente, hoje sei que era tuberculose, e ela faleceu. Depois disso meu pai tentava de tudo para compensar a ausência dela, e quando eu fiz 14, percebi que ele levava para casa algumas amigas e que eram legais comigo, até que finalmente a última ficou em nossas vidas. Eu não era inocente, era a minha madrasta. E então meu pai ficou mais frio comigo, e a mulher tirava toda atenção dele para ela. Nunca fui uma adolescente rebelde, eu era dedicada, e mesmo sabendo que aquela mulher estava tomando o lugar da minha mãe e roubando meu pai de mim, eu jamais a ataquei, mas ela insistia em dizer ao meu pai que eu era ruim com ela. Enfim, dos meus 16 até meus 18 anos eu vivi um inferno, porque quando eu completei 18 anos, eles me colocaram para fora de casa. Diziam que eu era maior e deveria seguir meu rumo. Por incrível que pareça, aquela mulher conseguiu mudar meu pai que era super protetor e carinhoso, a ponto dele acreditar que deveria colocar a filha para fora de casa.
Nesse dia, eu estava revisando matérias para o vestibular no meu quarto, meu pai bateu na porta educadamente e disse para eu ir a sala, eu disse que estava estudando e ele apenas repetiu em tom bem rude. Na sala estava a donzela da minha madrasta no sofá acariciando a barriga. Não perguntei, sabia que fazia isso de propósito para eu perguntar se eu teria um irmão e eu me recusei a dar esse gosto. Então eles me deram a notícia: a casa era pequena, tinha apenas dois quartos e eu tinha que aprender a ser independente.
Saí de casa, eles me acompanharam até a porta, carregando uma mala minúscula ( só pude levar o que comprei com meu dinheiro) ironicamente meu pai disse que se eu precisasse de alguma coisa, ligasse para minha avó. Claro que eu ia ligar para minha avó que mora do outro lado do país para dizer que eu precisava de um teto.
Era noite, e jazia uma neblina espessa na rua. Tudo muito silencioso, e só podia ver 5 passos à frente. As luzes dos postes estavam fracas e não serviam de nada, a não ser deixar o ambiente mais horripilante, além do frio. Eu andava bem devagar e ouvia meus passos, sempre atenta para não ouvir outros além do meu. De vez em quando, algum barulho de tampa de lixeira caía no chão, eu olhava assustada e um gato passava correndo, outrora um vulto passava voando sobre minha cabeça e pousava nas árvores da rua: uma coruja ou morcego, não dava para distinguir direito.
Eu estava andando sem rumo até então, e percebi que eu precisava ir para algum lugar antes que ficasse pior a minha situação. Lembrei do meu melhor amigo do colégio: a casa dele ficava a alguns quarteirões de onde eu estava. Comecei a andar mais rápido, e quando passei por uma viela ouvi: "Dani" quase como um sussurro e parei subitamente atenta se foi uma ilusão da minha mente ou alguém tinha me chamado, então ouvi novamente "Dani" vindo da viela a qual eu parei em frente. Olhei e agucei minha visão para tentar enxergar alguém. Como disse: a neblina não ajudava muito e tive que entrar na viela para poder ver e tudo ficou muito silencioso. Quando me virei para voltar a rua principal e ir a casa de meu amigo ouvi "Dani! Por aqui!", olhei para trás e vi um vulto de uma pessoa parada aproximei para tentar ver quem era e o vulto foi se afastando e eu disse: "Espera! Quem é você?" Então pensei que era insano o que eu estava fazendo: era noite e não havia ninguém na rua e eu estava seguindo uma voz dizendo meu nome, eu virei novamente para sair da viela e dessa vez ouvi uma voz de criança gritando: "Daniela, não me deixa!".
Dessa vez entrei na viela determinada e perguntei: " que brincadeira é essa? Quem é você?" Conforme eu me aproximava e vulto se afastava "Como sabe meu nome?" E eu continuava a tentar me aproximar da silhueta que se afastava rápido. Até que percebi que estava correndo para alcançá-la, então a silhueta virou a esquina do prédio e quando eu fiz a mesma curva percebi que estava em uma clareira de uma floresta que só se conseguia ver a sombra das árvores, eu poderia dizer que era um parque ou praça se não fosse o estranho poço no centro da clareira. A neblina estava apenas além das árvores e conseguia ver bem a clareira com a lua brilhando no céu, apesar de algumas nuvens se aproximando para a encobrir.
Eu ia dar meia volta quando ouvi a voz de criança novamente "Dani! Socorro! Me ajude" eu corri até o poço e parei um metro antes, e me aproximei com cautela e ouvi gritar "Dani!" Foi longe e parecia até que a criança estava caindo no poço. Rapidamente me aproximei e olhei para dentro, onde não vi nada, estava tudo escuro, então gritei 'Ei!'. Contando agora parece tosco, mas era mais estranho uma criança me chamar de dentro do poço. Mas então senti uma mão pesada me empurrar para dentro do poço e dessa vez quem gritou fui eu, e enquanto caía, eu vi a luz da lua no topo do poço e uma silhueta a me olhar cair.
No final do poço não tinha água, mas sim muita palha, isso me impediu que na queda eu quebrasse algum osso. Estava escuro, mas eu consegui enxergar que esse poço era diferente, já deixei claro que não havia água nele, mas eu parecia estar em outro lugar, e não no fundo do poço, tinha paredes de pedra e percebi uma porta, então me levantei andando com calma me aproximei da porta e saí.
Parecia estar de dia, mas não se via o sol ou até mesmo o céu, estava com uma neblina espessa, e o chão era de paralelepípedo sem asfalto. E eu escutava o barulho de rodas, pareciam carruagens, estava difícil de enxergar, mas como suspeitei pelo barulho, eu via a sombra de carruagens passando em minha frente. Então desesperada para saber onde eu estava, me aproximei de uma silhueta que parecia ser de uma pessoa, mas quando a toque ela se virou para mim e não tinha rosto, em espanto eu gritei e me afastei em um salto para trás, a criatura se virou novamente e continuou seu caminho sem me dizer nada ou fazer nada.
Eu estava desesperada. Queria sair dali, olhei para todos os lados buscando uma saída, e vi uma carruagem se aproximando, e quando consegui enxergar, percebi que não era puxada por cavalos, e sim por um homem que tinha chifres, e sua pernas era de um quadrúpede. Ele tinha um olhar triste, mas apesar de esquisito, parecia amigável, me aproximei e perguntei onde era aquele lugar, ele me olhou triste e se virou para carruagem sem dizer nada, acompanhei seu olhar e vi duas pessoas encapuzadas sentadas. O fauno voltou a olhar para frente e voltou a puxar a carroça.
Me afastei abobada. Será que ele não entendia minha língua, ou as pessoas encapuzadas não o deixavam falar.
E nesse devaneio ouvi um grito gradual no meu ouvido, ficou tão alto que tentei tapar minhas orelhas, mas era em vão, o grito aumentava e eu fechei os olhos não suportando a dor, abaixei aí chão, e pedindo para parar. E finalmente parou. Devagar abri meus olhos e me deparei com uma criatura pálida, com olhos saltados, era um palhaço, mas sua boca era enorme e tinha muitos dentes caninos que avançaram em meu rosto. Como reflexo eu fechei os olhos e coloquei meu braço na frente como reflexo de proteção, então ouvi chamar novamente "Dani!" Abri os olhos e o palhaço não estava mais lá, eu estava sozinha novamente, mas um cheiro de carne queimada invadiu minhas narinas, e comecei a ficar sem ar, comecei a tossir e tossi tanto que engasguei e cuspi sangue. E ouvi me chamar do lado esquerdo "A Saída! Dani!" E em fúria respondi: "quem é? O que quer de mim?" Como resposta ouvi risadas, a princípio de felicidade, e depois o tom ficou grave e parecia uma risada maligna. Sem suportar as risadas, mais uma vez tapei meus ouvidos e me abaixei próximo ao chão. As risadas cessaram, ouvi trote de cavalo se aproxima e vi as quatro patas, mas quando levantei meu olhos, não era uma cabeça de cavalo, e sim o tronco de um homem, e eu perguntei em súplica o que queriam de mim e ele depois de me encarar por longos segundos me respondeu sério "Seu lugar não é aqui!" E eu respondi irada: "Eu sei! Onde está a saída?" Mas ele não me respondeu e deu meia volta e saiu a galope.
Eu estava naquela rua de pedra, em uma neblina onde só conseguia ver vultos à minha frente, com cheiro de carne queimada. Não sei se por causa do desespero, por causa do cheiro, mas comecei a sentir uma dor de cabeça forte e minha visão ficou mais turva do que já estava. Eu ouvia risadas, só que baixo, pareciam que estavam longe de mim. Sentei no chão, eu estava desorientada e então ouvi a criança me chamar de novo, mas parecia estar bem próxima e percebi se aproximar da neblina: uma criança, cabelos bem curtos, não sei se era menina ou menino, as roupas estavam surradas e parecia ter 7 anos. Ela me olhava sem piscar e parecia muito triste, eu perguntei quem era, mas dessa vez em um tom amigável e não acusatório como antes, e ela me respondeu "você precisa sair daqui!" E eu fiquei desesperada "eu quero! Mas não sei como!" E ela me respondeu para seguir a razão e nesse momento, antes que eu perguntasse mais alguma coisa, uma figura alta, toda de preto inclusive um capuz que me impedia de ver seu rosto veio por trás da criança e levantou uma foice e cortou a cabeça da criança como se estivesse cortando um toco de árvore. A cabeça rolou pela esquerda e eu no mesmo instante gritei "não!" Não sabia quem era a criança, mas ver aquela cena brutal me desestabilizou mais do que eu estava. Não consegui me mexer, não fazia mais nada, fiquei sentada paralisada olhando o nada, porque a figura tinha desaparecido, e a criança decapitada estava ainda em pé na minha frente. Senti duas mãos tocarem cada um de meus ombros por trás, meu estado não me permitia alguma reação e ainda encarando a criança ouvi uma voz doce em meu ouvido "vamos! Você não pode ficar assim".
Senti braços me envolverem e me tirarem do chão, estava me carregando, e eu via a criança ficando mais longe até eu não enxergar mais nada. Me senti com muito sono, um sono incontrolável e adormeci nos braços daquele estranho.
Acordei com canto de gaivotas, eu estava em uma praia deserta, a minha frente o mar com sua ressaca e gaivotas voando em círculo no céu, atrás de mim uma mata e mais ninguém. Eu estava na areia. Estou em um lugar melhor. Deitei e encostei minha cabeça em uma pedra enquanto acariciava a areia, eu só estava aproveitando aquele momento bom, antes de sair e procurar meu rumo. Fechei os olhos e apesar do céu aberto, ainda me sinto em um lugar onde eu não deveria estar.
Em uma saleta, dois homens conversavam, um uniformizado e o outro com uma prancheta nas mãos:
-Encontramos ela na viela perto da avenida Mascaravo, entre os sacos de lixo. Estava delirando, não consegui fazer ela conversar! Foi uma vizinha que nos telefonou por não conseguir contato com ela.
-A família sabe?
-Sim, encontramos o documento dela na mochila que estava perto dela e o contatamos. Vão providenciar o necessário.
-Alguma ideia do que a deixou assim?
-Não, ela estava bem histérica apesar de parecer não saber que estávamos com ela, só se acalmou quando injetei o sedativo.
-Por que usou sedativo?
-Ela se debatia muito, e era impossível carregá-la
-Ela dizia alguma coisa?
-Não, só gritava e resmungava palavras indefinidas.
-Posso vê-la?
O homem de uniforme levantou e o da prancheta levantou também, saindo da saleta, foram andando em um corredor com muitas portas e pouca luz, pararam em frente a penúltima e o homem uniformizado apontou para porta:
-Somente através do vidro.
E pelo vidro o homem com prancheta viu uma garota de 18 anos encolhida no canto da sala que não tinha nada. Ela estava com uma camisa de força e olhava para o teto sem parecer ver nada, sussurrando alguma coisa inaudível.
-Por que a camisa de força?
-Ela se debate muito, é para não se machucar.
-Algo mais a acrescentar?
-Ah! Lembrei de uma detalhe: a única palavra que conseguimos entender é Dani.
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