Conto: ONDE VOCÊ FOR, A MÁGICA TE SEGUIRÁ



I

Eu sempre fui a menina esquisita. Bom, pelo menos para meus colegas da escola. Me chamavam de nerd , quatro olhos - não sei qual é o problema em usar óculos - e de CDF, mas mal sabiam que a única matéria que eu ia bem, era Literatura, por causa dos livros. Sim, eu sempre gostei de me aventurar pelas histórias das páginas, às vezes nos romances, às vezes nos suspenses, às vezes nas ficções, independe do gênero, eu sempre estava a usar a minha imaginação, só nunca gostei de auto ajuda, porque não me davam asas para voar e… porque quem era o Sr fulano autor para me ditar como devo viver minha vida? 
Eu não era anti social, mas eu tinha apenas uma pessoa o qual eu confiava e contava sobre meus sentimentos, medos e sonhos, a Raquel. Ela geralmente estava sempre comigo, era muito tagarela e vivia falando dos meninos, cada semana era um paquera diferente. Ela me acompanhava em quase todos os lugares, até mesmo na minha casa ela vivia indo, só não ia comigo a biblioteca, nas minhas horas vagas eu sempre ia lá, para me distrair e me divertir, só que para ela, ler não era divertido. Então eu ia sozinha, contava para ela o enredo, falava dos personagens, tentava lhe despertar o interesse, mas ela sempre dizia “para que vou ler, se você contando é muito mais divertido?”, eu sorria, mas nunca desisti, sabia que um dia ela iria ter o interesse de se aventurar sozinha. 
Era um dia qualquer, ensolarado, com os alunos em volta do portão de saída da escola, alguns namorando, outros andando de skate e outros em grupos fazendo algumas piadas que eu nunca tive o interesse em saber. Estava indo em direção a biblioteca, com minha cabeça baixa para não ouvir os meninos zombarem de mim, quando ouvi gritarem meu nome:
-Andressa! - olhei para trás e vi Raquel correndo tentando recuperar o fôlego - Espere! Está indo embora sem mim?
-Você demorou para sair, estava com o Murilo e bem… estou indo a biblioteca, você nunca vai comigo a biblioteca.
-É verdade - ela riu - Bem, já que vai a biblioteca, vou ver se consigo alcançar o Murilo e… bem, você sabe!
-Sim, sim, vai lá com o novo “amor da sua vida”! 
Ela me deu um beijo na bochecha e saiu correndo no sentido oposto, voltando para aquela muvuca de alunos. A biblioteca não ficava longe, cheguei em alguns minutos. Ela era a biblioteca central da cidade, era bem grande e apesar disso, todos os funcionários me conheciam, assim que cheguei, me cumprimentaram:
-Olá Andressa! - disse o recepcionista que tinha um sorriso bem grande 
-Oi Antony! - passei por ele indo em direção aos fundos onde ficavam as prateleiras, no caminho tinham algumas mesas redondas onde as pessoas faziam trabalho em grupos, e a senhorita Teresa que geralmente estava sempre arrumando o local, me cumprimentou: 
-Boa tarde, veio continuar sua aventura?
-Na verdade, vim começar uma nova, aquela já terminei!
-Oh! - ela se espantou - Você é rápida! Já sabe qual será a aventura da vez?
-Não, mas sei bem onde encontrar! - acenei para ela e andei mais rápido na direção das prateleiras.
Passei tranquilamente pela prateleira de ficção fantástica, examinando cada título para aquele que mais chamava minha atenção, tendo o cuidado de examinar os que ficavam no topo, mesmo eu sendo baixa, não desprezava os títulos que ficavam no alto. Todos bem apagados, até que um me chamou atenção: era um livro bem grosso, a capa era verde musgo, mas as letras eram douradas, e estava tão brilhantes que pareciam ter uma luz própria. Estava no topo, eu não sabia se alcançaria, mas o título dizia: Onde você for, a mágica te seguirá. E então eu me ergui nas pontas dos pés o mais alto que pude, estiquei meu braço direito o mais alto que pude, enquanto apoiava minha mão esquerda para não perder o equilíbrio, me estiquei e consegui tocar no livro, mas estava longe de conseguir tirá-lo dali. Então tive a brilhante ideia de pegar um livro grosso que estava na prateleira debaixo e fazer de calço. Tinha que ser rápida, se Teresa visse eu pisando no livro, ela me mataria. Coloquei o livro grosso no chão e subi, fiquei um pouco mais alta, mas ainda assim tive que me esticar muito para alcançar o livro. Consegui pegar e puxei, era pesado, coloquei mais força e puxei com impulso. O livro deslizou e então eu perdi o equilíbrio porque era muito pesado, escorreguei do livro que estava embaixo e o livro grande e pesado o qual eu queria tanto, caiu sobre mim e depois caiu no chão com as páginas abertas, eu que ainda estava tentando me equilibrar no outro livro, não consegui e caí na direção do outro livro aberto, em fração de segundos eu vi aquelas páginas brilharem tanto que parecia que tinha-se aberto um portal, e quando eu ia cair ao chão, uma força me sugou e tudo começou a rodopiar, e de repente a biblioteca ficou tão longe e eu só conseguia ver tudo brilhando, eu caia para algum lugar, não pensei em mais nada e só gritei, e tudo ainda girando e eu não conseguia ver onde eu estava caindo, até que senti o baque no chão, caí de cara. Tateei o chão procurando meu óculos, porque naquela confusão ele saiu de meu rosto, e senti uma terra seca, entranhei, não parecia o chão de linóleo da biblioteca. Achei meu óculos e coloquei rapidamente no rosto, então eu vi: fui teletransportada para outro lugar.

II

Será que eu bati a cabeça com tanta força que agora meu cérebro estava criando um cenário enquanto eu estava em coma? Não. Eu conseguia ter as sensações reais dos sentidos, eu sentia a brisa quente e abafada, eu via muito nítido para ser projeção da minha mente, e eu escutava… Eu não escutava nada, porque era tudo estranhamente muito quieto, mas eu ouvia o vento, que passava como se estivesse com pressa de ir em algum lugar. 
Me levantei, limpei minhas roupas cheias de poeira, e olhei ao meu redor, não havia nada, somente um solo seco sem nenhuma vida, ao longe eu conseguia ver umas montanhas rochosas e mais nada, olhei ao céu que estava bem azul, com pouquíssimas nuvens, mas não havia nenhum abutre a me observar morrer, porque querendo ou não era isso mesmo, eu estava em um deserto sem nada, não poderia me alimentar nem beber, e apesar de parecer muito real, eu comecei achar que estava no limbo do meu cérebro. Fiquei andando e andando e não encontrei nada. É, eu definitivamente bati minha cabeça com muita força e estou em estado vegetativo e meu cérebro está criando esse lugar.
Bem, quando cansei, me sentei em uma rocha que por sinal estava bem quente, mas eu estava tão cansada que não me importei. Olhei para aquele solo árido e… eu estava sentindo o cheiro da terra! Como eu poderia estar em coma sentindo as sensações do lugar que meu cérebro criou? Bem, se isso é fruto da minha imaginação, eu posso criar o que eu quiser! Em um salto eu sorri e comecei a imaginar: esse chão: quero uma grama bem verdinha! Fiquei alguns segundos parada e nada aconteceu. Ahg! Droga! Deitei-me no chão com barriga para cima e comecei a alisar a terra, era bem seca e dura, continuei até que senti algo mais macio, continuei sem olhar e aquilo estava crescendo, parecia… grama! Levantei em um salto e era isso, onde eu estava deitada havia uma grama bem verdinha. Matei a charada: eu precisava fazer as coisas com carinho e tudo ficaria como imaginei.
E então, com muita animação, comecei logo a aumentar, tirei os sapatos e percebi que o carinho funcionava com os pés também, e de repente comecei a ouvir uma música - provavelmente eu estava em um quarto no hospital e ligaram o rádio - o que me deu ritmo e comecei a dançar. Por onde meus pés e minha mãos tocavam, apareciam alguma vegetação, a música era Lost On You, e por incrível que pareça o lugar estava ficando bonito, a música parou e eu parei e fiquei a observar, fiquei decepcionada porque imaginei uma cidade, uma cidade parecida com a minha, porque eu criei uma floresta, e falei isso em voz alta:
-Por que uma floresta??? 
O som ecoou, e tive a impressão de ouvir uma risadinha de deboche, fiquei atenta mas tudo estava muito quieto, salvo pelo o barulho do vento que batia na copa das árvores. Sentei em uma rocha, e suspirei:
-Até meu cérebro debocha de mim!
Ouvi a risadinha de novo, e olhei rapidamente para trás, depois fiquei atenta, será que havia alguém no meu quarto de hospital rindo de mim?
-Vamos! Acorda! Acorda! - gritei e depois em um tom mais desanimado disse mais para meu interior - Não quero ficar sozinha nessa floresta tãaaao silenciosa
-Você não vai acordar! 
Levantei rapidamente procurando por todas as partes, atrás das árvores:
-Quem está aí? Quem está falando comigo?
-Estou aqui!
Olhei para cima, e na copa de uma árvore havia um garoto aparentemente da minha idade, talvez um pouco mais velho devido a uma barba rala. Estava com uma roupa bem desgastadas e diferente, tinha o cabelo grande - fazia tempo que não via uma tesoura, sobre um galho como se seu peso fosse igual de um passarinho
-Quem é você? Eu não te conheço! O que faz na minha mente?
-Pensei ouvir você dizer que não queria ficar aqui sozinha - ele sentou em posição de lótus e veio flutuando até ficar mais próximo de mim - E sobre não me conhecer… não significa que seus olhos não tenha me captado e memorizado enquanto passeava pela rua, por exemplo.
-Vai me dar aula de psicologia agora?
-Você é sempre assim? Tão arisca?
-Sou! - percebi que falei em tom bem grosseiro - Desculpe, eu estou acostumada com as pessoas sempre me chamando de esquisita.
-Falando dessa maneira, é esquisita mesmo!
-Ei! Não te dou o direito de me ofender aqui! Aqui é meu mundo!
-Se você diz - ficamos um tempo olhando um para cara do outro e então ele começou a olhar ao redor - Você fez um bom trabalho, estava tudo tão seco e sem vida…
-Na verdade, eu não sei porque criei essa floresta, eu pensei em um parque e em volta uma cidade, mas nada de concreto se fez…
-Você não pode criar nada que não tenha vida.
-Ah é? Por quê? - Disse desafiadora
-Bem… uma hora você entenderá - ele flutuou de novo para cima e deitou em um galho - Mas acho que ainda tem muito espaço para você dar vida.
-Ok! Serei otimista, se é para ficar presa no meu cérebro com um maluco que não conheço, que seja um lugar agradável!
-Bem, meu nome é Tomás, prazer! Agora você me conhece.
Eu continuei andando para uma direção aleatória, já que ali não existia trás ou frente, e então me lembrei de que li nos livros, como as pessoas antigas se orientavam: pelo Sol. Foi assim que consegui localizar um leste e oeste, norte e sul. Achei engraçado meu cérebro criar o sol, geralmente nos sonhos não existe sol. Mas ignorei e voltei a criar, criei diferentes espécies de plantas, todas as quais eu lembrava ver pessoalmente ou por imagens na internet ou livro, estava disposta a criar uma biodiversidade. E então percebi que tocava uma música, o que me deixa mais disposta nessa criação: Drama Club. Parecia que a pessoa que estava colocando essas músicas na mundo real, sabia o que eu estava sentindo. Eu estava criando com determinação e ao mesmo tempo irritada porque o garoto continuava flutuando aonde eu ia, mas resolvi o ignorar 
Foi quando na minha caminhada me deparei com a margem de um lago bem cristalino, sentei a beira e coloquei meus pés dentro, a água estava morna e eu fechei os olhos apreciando a sensação, foi quando de repente ouvi um grito:
-Como ousa?! Quem te deu autorização para pôr os pés no meu lago?
Rapidamente eu tirei os pés e procurei de onde vinha aquela voz feminina que definitivamente não era do Tomás, porque ao olhar para ele, parecia tão surpreso quanto eu. E então vi emergir do centro do lago uma garota dos cabelos bem longos e loiros:
-Eu te fiz uma pergunta.
-De.. desculpa - gaguejei - Não sabia que era seu! - A garota veio na minha direção e parou alguns centímetros de mim, tive que olhar para cima porque ela era mais alta
-Ora, ora, com ela você trata com temor!
Foi então que percebi que estava me desculpando com uma garota criada na minha mente, rapidamente me recompus e dei um passo para trás:
-Esse não é seu lago, se está na minha mente não tem nada seu, você nem é real!
Vi a garota ficar confusa e olhar além de mim, estava olhando para Tomás.
-Ela acha que estou na mente dela?
Virei e vi Tomás dar de ombros e sorrir maliciosamente 
-Garota não estou na sua mente, de onde tirou isso?
-Ah legal cérebro, agora quer me deixar confusa? Eu caí enquanto tentava pegar um livro e bati a cabeça e agora estou em um coma e vocês são frutos da minha imaginação para eu não ficar em um limbo!
Eles ficaram em silêncio e depois ambos caíram na gargalhada, fiquei confusa e como automático perguntei:
-Do que estão rindo?
-Garota - a moça dos cabelos longos colocou a mão no meu ombro e senti seu toque molhado e leve - Você não está em coma - ela dizia enquanto tentava parar de rir - Você veio para o mundo da devastação.
-Quê??? Como assim? Que mundo é esse?
-Vai me dizer que não estava tentando pegar o livro Onde você for, a mágica te seguirá
Olhei para Tomás que sorria como se estivesse explicando que a Terra é geoide e não redonda, e me lembrei do livro que caiu aberto e apareceu uma luz muito intensa como se uma porta tivesse aberto. Uma porta! O livro era um portal e quando caiu foi aberto me sugando para dentro de um mundo paralelo. Agora tudo fazia sentido porque tudo que eu sentia era tão real e não como sonho.

III

Depois que me caiu a ficha, e entendi que eu estava dentro do livro, sentei-me a beira do lago cristalino e conversei com Tomás e com Celina. Se eles sabiam mais do que eu, deveriam parar de debochar da minha cara e me explicar qual era o propósito daquilo. 
-Então já faz um tempinho que estão aqui?
-Sim… mais ou menos, não temos calendário e nem relógio então não contei a quanto tempo exatamente que estamos aqui.
-E vocês vieram para aqui da mesma forma que eu?
-Bem, eu não caí dentro do livro como você - Tomás riu - Eu o peguei e levei para o fundo da biblioteca, quando abri a primeira página, tinha uma descrição bem simples desse lugar, me lembro como se fosse hoje:
“Um lugar remoto, onde não há vida e somente o solo árido e uma pequena lagoa. Não há nenhum som, o lugar é morto…”
-E quando virei a página, uma luz bem forte quase me cegou e então fui sugado para dentro do livro.
-Aparentemente, todo mundo que vem aqui, tem alguma habilidade especial - Celina começou a me explicar enquanto passava a mão em seus cabelos - Eu tive uma habilidade de criar a água aqui, quando li o livro a descrição da primeira página nem falava sobre a água, era só “um lugar remoto sem vida”
-Qual é sua habilidade, Tomás - me virei para ele inocente - Voar?
Ele caiu na gargalhada e Celina riu também, só que mais discreta:
-Sério que ainda não descobriu? - ele me perguntou e só balancei a cabeça negativamente - Eu tenho habilidade de criar a música, foi eu que deixei aquele clima melhor para você criar a sua pequena floresta!
-Ain que boba eu sou - bati a mão na testa e depois ri - E eu achando que era alguém no quarto do hospital que ligou o rádio 
Nós três começamos a rir e eu percebi que o sol estava bem baixo, era o pôr do sol. Celina veio até a mim e sentou do meu lado de frente para o sol, e Tomás sentado em posição de lótus enquanto flutuava desceu para perto de mim:
-Para de ser exibido e senta com a gente! - Disse Celina sem olhá-lo e ele sem graça (era a primeira vez que eu o via sem graça, ele parecia sempre seguro de si e pronto para soltar alguma piadinha, talvez ele gostasse de Celina) apenas sorri e ficamos a olhar o pôr do sol ao som de Blinding Lights que Tomás colocou.
-Essa música é muito boa - comentou Celina - Você tem uma “playlist” muito boa!
-Dá até vontade de dançar! - comentei
-E por que não? - Celina se levantou e começou a dançar no ritmo da música, eu e Tomás ficamos olhando sorrindo, mas logo ela me pegou pelas mãos e me fez dançar com ela, tentei relutar no começo, mas acabei não resistindo e logo depois já estava os três dançando - na verdade Tomás tinha um gingado bem interessante, até me surpreendi. Quando a noite a caiu de vez, eu vi um céu muito estrelado como eu nunca vi na minha cidade, parecia até que estávamos no universo. Então nós três deitamos virados para o céu e começamos a admirar, Tomás mudou a música para Save Your Tears e ficamos brincando de adivinhar formatos nas estrelas. 
Não tinha percebido quando dormi, mas acordei com algumas gotas de chuva no meu rosto. Eu estava deitada sobre algumas folhas debaixo de uma árvore sozinha - quem me colocou ali? De repente comecei a ouvir umas risadas animadas e rapidamente me levantei, e vi Celina saltitando e sorrindo na minha direção enquanto dizia:
-Eu consegui! Finalmente eu consegui! Graças a você, Andressa!
Sem entender nada fui na direção dela e surpreendentemente ela me abraçou enquanto sorria:
-Eu finalmente consegui fazer chover!
-Que legal, mas… o que eu tenho a ver com isso?
-Como assim? A floresta! Você fez nascer vegetação e assim eu consegui através das árvores criar nuvens e fiz chover, agora poderá aumentar a vegetação!
-Ah! - verdade que já tinha aprendido em algum ano da escola sobre o ciclo da água, mas nem tinha me ligado - O lago não evaporava com o sol criando nuvens?
-Não seja boba, o lago era muito pequeno, e eu tinha um trabalho danado para mantê-lo, se não o sol evaporava tudo! - ela voltou a saltitar enquanto a água da chuva ensopava nós duas!
-Tomás! Cadê você para colocar uma música que combine com o estado de espírito da Celina? - eu disse com ironia 
-Muito engraçado! - ele apareceu como da primeira vez, nas copas das árvores 
-Você consegue ficar invisível também? Porque você simplesmente aparece e some do nada?
-Sim, eu consigo fazer as ondas sonoras ficar densas o bastante para me esconder atrás delas!
-Acho que isso é fisicamente impossível!
-Disse certo, fisicamente, mas aqui é magia! 
-Tá bom, agora me responda uma coisa: quem me colocou deitada sobre aquele monte de folhas? Eu nem percebi quando dormi!
-Ninguém! Seus poderes te trouxeram para perto da sua, como dizer: habilidade? - fiquei o olhando confusa o que fez ele tentar explicar de outra forma - Veja bem, você tem habilidade de criar vida vegetal, então quando você dormiu, foi conduzida para aquilo que você domina, assim como a Celina voltou para o fundo do lago. 
-E você?
-Não sei explicar, fico em um espaço onde há ondas sonoras, mas não consigo te explicar porque nunca vimos isso na nossa vida na Terra.
-Você acha que não estamos na Terra?
-Estamos na Terra porque o livro está na Terra, e não faz essas perguntas estou aqui como você, não fui eu quem criou o livro mágico!
-Pensei que você era o alto astral da turma - disse com ironia - mas hoje você está bem ranzinza, é a chuva?
Ele não me disse nada e sentou no galho da árvore, não estava sorrindo - parecia pensativo. Mas eu não quis o incomodar e fui até Celina que estava ainda dançando na chuva:
-Ei garota, acho que está bom de chuva por hoje!
Ela me olhou ainda sorrindo e fez um movimento com as mãos que fez as nuvens se dispersarem.
-Desculpa! Me empolguei, fazia tempo que eu ficava no meu lago, sem nada diferente para fazer, e quando eu consegui fazer chover, me senti útil!
-E os peixes? Você podia se divertir com eles! - eu disse sorrindo
-Peixes? - seu sorriso se apagou - Não tem peixes, Andressa!
Eu fiquei sem graça, percebi que comentar aquilo tinha tirado o êxtase dela, e não era o que eu queria, ela continuou:
-Não existe nenhum tipo de animal, como o Tomás disse, não havia vida aqui agora que você trouxe a vegetação, é mais possível, mas precisa que alguém os traga.
-Era por isso que o Tomás estava triste?
-Ele estava triste? - ela ficou pensativa mas não esperou eu responder - Acho que não, deve ser saudade de casa, bem, as coisas estavam bem paradas por aqui, teve uns dias antes de você vir, que ele ficava repetindo a mesma música triste todo santo dia!
-Eu acho que ele gosta de você!
-O que? - ela me olhou surpresa - Por que você acha isso?
-Você pode não ter percebido, mas eu que estou de fora percebi!
Ficamos um tempo olhando para a cara da outra quando senti uma poça de água cair sobre mim, e então Celina caiu na gargalhada e começou a correr em direção ao lago, eu abaixei e peguei um punhado de terra e corri atrás delas:
-Volta aqui! Isso não vai ficar assim!
E então ficamos como duas crianças melhores amigas pulando na água, salpicando água uma na outra, outrora eu saia e jogava terra nela, até nos cansarmos e ficamos boiando na água enquanto o sol aquecia nossa pele.

IV

Tinham se passado alguns dias e algumas coisas mudaram, percebi que não sentíamos fome, mas resolvi criar árvores frutíferas para passar um tempo degustando diversas frutas. Eu aumentei a floresta e Celina criou uma nascente. Sentíamos falta das músicas, Tomás depois daquele dia da chuva, ficou amuado nos cantos, e só colocava música quando o chamávamos, mas ainda assim eu o percebi com baixo astral. Como Celina disse que ele estava assim porque estava com saudade de casa, não insisti com ele, mas no fundo eu achava que era outra coisa, e estava decidida a mudar o humor dele.
Nesse dia, deixei Celina tentando criar uma fonte perfeita, e me adentrei na floresta, estava bem silencioso, conseguia ouvir as folhas caindo e o vento balançando a copa das árvores. Subi em uma figueira e comecei a assoviar.
-Isso é um jeito de me chamar? - percebi Tomás em um galho um pouco acima de onde eu estava
-Funcionou, é isso que importa!
-O que você quer? - ele disse impaciente mas não grosseiro
-Eu me cansei de te ver assim, quando nos conhecemos você ficava rindo da minha cara e colocava as músicas mais divertidas, e agora… - suspirei - Você nem fica perto de mim e da Celina
-Vocês estão bem sem mim! - ele deu de ombros
-Sabia!
-Sabia o que? - ele me olhou espantado
-Você gosta dela e está com ciúmes porque passamos um bom tempo juntas!
-Ora ora, você me pegou! - ele desceu flutuando até o galho onde eu estava - Para quem achava que estava em coma, você percebeu rápido!
-Pensei que ia negar, mas me poupou de tentá-lo convencer a falar a verdade. Por que você não fala para ela?
-Por mais que eu pareça confiante, eu percebi uma coisa que antes de você chegar não tinha percebido.
-O que?
-Antes de você chegar, Celina era ranzinza, eu sempre tentava animá-la, mas ela sempre queria ficar no fundo do lago dela, e quando saia para superfície era para brigar comigo… e quando você chegou, ela mudou completamente, ela sorri sempre que está com você e até dançou - ele olhou para mim triste - ela nunca tinha dançado daquele jeito antes.
-Tomás, ela mudou porque quando cheguei eu trouxe vegetação, e isso deu esperança para ela…
-Acho que na verdade, ela gosta de você.
Fiquei sem palavras, ele não esperava essa resposta, ele disse aquilo convicto que era verdade, mas eu não quis acreditar, eu sempre fui a menina esquisita e ninguém nunca se interessava por mim, e de repente Tomás me diz que alguém gostava de mim. Precisava me convencer e convencer a ele que ela gostava de mim, mas como amiga.
-Não fale bobagens, por que ela gostaria de mim? Não tenho nada de interessante - Comecei a descer do galho - Venha, você vai falar para ela e acabamos com essa sua teimosia boba!
Quando cheguei ao chão ele ainda estava no mesmo galho parado:
-Você acha mesmo que vou lá me declarar para depois ela me dar um fora e eu passar o restante da vida com ela sabendo que não tenho chance? 
-Como você é bobo! Qual é a diferença do que você já está agora? A diferença é que você está sem saber a verdade e está sofrendo antecipadamente.
-Por um lado você tem razão - ele riu e desceu flutuando até perto de mim - Com o fora certeiro eu poderei me dedicar a outra coisa: tipo ficar bem longe de vocês!
-Ah! Cala a boca! - eu bati de leve na cabeça dele e fomos juntos até o pequeno riacho que eu tinha deixado Celina. O caminho todo ele ficou me questionando como ele deveria fazer, eu que nunca tive experiências reais com essas situações dei opiniões de como ele deveria fazer de acordo com os livros de romance que eu lia: “Seja você mesmo, apenas se aproxime a chame e diga”. Quando já estávamos perto eu disse que ele teria que continuar sozinho: 
-É claro! Você acha mesmo que quero testemunha para o meu fora?
Nós dois rimos, eu sabia que ele estava mais confiante e disse aquilo para descontrair o clima. O empurrei e fiquei para trás. A uma certa distância dele eu me aproximei do riacho, ele não precisava saber que eu estava vendo, mas eu quis ver aquela cena, sabia que ia dar certo. Celina tinha conseguido fazer a fonte, estava sentada nela deixando os pés dentro da água com um sorriso satisfeito. Ela percebeu que Tomás estava se aproximando e sorriu para ele:
-Veja! Estou satisfeita, depois de muitas tentativas!
-Verdade ficou muito bonita mesmo, mas não é novidade para mim, tudo o que faz fica bonito! - ele disse enquanto sentava ao lado dela!
-Obrigada! - ela respondeu com a expressão de quem percebe que aquilo não era um comentário normal, mas sim próximo a um flerte. Ele ficou sentado um tempo olhando para a água que corria nos pés deles em vez de olhar para ela. Ainda bem que ela era mais destravada e puxou o assunto - Você está bem? Eu e Andressa percebemos que tem se afastado e está um pouco triste… 
-Eu gosto de você! - ele disse olhando para os olhos delas, eu não imaginei que ele seria tão direto quando disse para ele ser - Não tem problema se não gostar de mim da mesma forma, eu só precisava te dizer isso para não ficar na dúvida - ele se levantou de repente, deve ter perdido a coragem e nem queria mais saber a resposta dela, mas ela segurou o pulso dele, sem dizer nada ela se levantou e aproximou dele dando um beijo. 
Nessa hora quase não me contive, mas estava muito silencioso e não quis que soubessem que estava espiando tudo. Pulei e segurei o riso o mais baixo possível.
Depois daquele dia tudo mudou, agora ouvíamos música o tempo todo: quando estávamos os três juntos eram músicas agitadas e divertidas, e quando eu estava sozinha eram músicas mais calmas e apaixonadas, provavelmente os dois estavam juntos. 
Tirando isso, nada muito mudou. Quando eu estava sozinha ficava observando o cenário que criamos, estava tudo muito bonito como uma fotografia para wallpaper de computador, mas algo estava faltando, estava faltando vida! Tinha muita vida vegetal sim, mas faltava passarinhos cantando, talvez um cachorro ou um gato. Eu nunca fui muito ligada a animais de estimação, mas parecia que dessa vez eu percebi a falta que eles faziam. Eu sempre fui uma garota calma, que gostava de ficar reclusa no meu mundo dos livros sem muita companhia, mas até eu estava sentindo falta de algo mais agitado, estava sentindo falta de novas aventuras, as aventuras que eu lia nos livros, e também, pela primeira vez eu queria também sentir o que Tomás e Celina estavam sentindo. Nunca tinha sentido antes, mesmo vendo Raquel e seus namoros passageiros, ou então os casais que ficavam na porta da escola, sempre achei aquilo superficial e efêmero. Mas com o casal que eu presenciava todos os dias, era como se eu estivesse lendo um dos meus livros de romance. Estava materializado na minha frente algo que eu nunca achei que existisse. Porque até mesmo em casa, meus pais não viviam assim, eles sempre estavam falando sobre dinheiro ou coisas materiais que era preciso comprar, e nunca os vi olhando para o outro como estava vendo os pombinhos em minha frente.
Eu espantei esses pensamentos, e tive uma outra ideia.

V

-Você quer fazer uma casa na árvore? - disse os dois uníssono 
-Sim, eu sei que não preciso porque não tem animais selvagens e só chove quando Celina quer, mas seria algo para aproximar de casa, na verdade estou um pouco cansada de dormir na pilha de folhas…
-Tá certo, vamos te ajudar!
-Minha especialidade é água, mas vamos nessa!
Nós gastamos um tempão para construir uma casa razoável, não tínhamos ferramentas e tivemos que improvisar, é claro que não fizemos em um dia também, começamos quando propus, mas por não termos calendário nem relógio, imagino que tenha se passado pelo menos uns cinco dias.
Durante esse tempo vi mais de perto o relacionamento dos dois, de vez em quando Tomás perturbava Celina com comentários da vida que tínhamos fora dali, Celina nos contou que ela já tinha terminado o ensino médio, estava na biblioteca estudando para os vestibulares quando achou o livro. Ela disse que era popular e suas amigas eram seguidoras, o que ela fazia ou pedia, as meninas seguiam e obedeciam. Tomás chamava ela de princesinha sem neurônio, só para vê-la com raiva, ela o insultava de volta o chamando de hipster sem futuro, mas isso não o atingia porque ele continuava rindo. Aproveitamos esse período para nos conhecermos melhor, e Celina o chamava assim quando estava com raiva, porque Tomás já tinha terminado o ensino médio a um tempo e não pensava em cursar faculdade, ele gostava de ficar tocando violão enquanto fazia mochilão com seus amigos:
-Sua rotina era bem ao ar livre, como você achou o livro?
-Verdade, biblioteca não era seu lugar favorito de frequentar, ao contrário da Andressa - disse Celina
-Bem, que aguarde o próximo capítulo porque não contarei minha peripécia agora.
-Ah fala sério! Para quê esse mistério? Não temos pressa, nossos pais não estão nos esperando e não temos compromisso nenhum! 
Ao dizer isso em voz alta, soou um clima pesado, nós três caímos a ficha de como poderia estar o mundo em que vivíamos, talvez nossos pais virando noites acordados, fazendo cartazes e colando nos postes da rua, ou então entrando em comunidade nas redes sociais de pessoas desaparecidas. Nós três ficamos calados, eu estava imaginando como todos estariam sem mim, meus pais que apenas convivem juntos sem mais sentimentos, minha amiga Raquel… É não tenho muitas pessoas para se preocuparem comigo.
-Realmente, está na hora de nos recolhermos! - o céu estava alaranjado, o sol já tinha se posto, mas ainda via a claridade de seus raios.
Celina e Tomás saíram, talvez passariam a noite juntos, eu não me intrometia em como viviam. Fechei a porta, só para delimitar minha privacidade, porque ali não fazia diferença. Deitei-me sobre algo que consegui deixar parecido com uma cama e fechei os olhos, somente fechei porque não consegui dormir. Ouvi um barulho lá fora, e não parecia o barulho habitual de folhas caindo ou galhos balançando, pareciam passos. Eu me levantei para ver, poderia ser Tomás ou Celina precisando de alguma coisa. Os passos estavam bem calmos e devagar, desacelerei os meus ao chegar na porta e abri devagar. E me surpreendi muito com o que vi, tinha uma corça, parada do lado de fora, comendo alguma coisa no chão. Era um animal!
Não pude me conter, eu fui bem silenciosamente na direção dela, queria tocá-la, sentir que era real, mas a audição desse bicho é muito boa, e rapidamente ela me olhou e depois se afastou correndo. Mas eu ainda estava com o sorriso bobo na cara. Alguém mais tinha chegado ali, para trazer os animais.
Assim que os primeiros raios do sol invadiram minha humilde casa, me levantei e fui correndo para fora, ouvi uma música tocar e sabia que Tomás estava ali. De fato, ao sair o encontrei encostado em uma árvore com uma flauta, fui até ele saltitando:
-Onde arrumou essa flauta?
-Eu fiz. Por que está tão animada?
Peguei Tomás pelo braço e saí o arrastando até a cachoeira em que Celina vivia - ela mudou do lago, depois de conseguir fazer a cachoeira - quando chegamos lá, Celina estava muito animada, saltando de um lado para o outro por cima da água.
-Celina! Andressa tem uma novidade para contar.
Ela nos olhos e veio sorrindo com algo na mão:
-Vejam! Peixes! Estou tão feliz, tem peixe no meu rio!
-Você estragou a novidade - eu disse brincando - Era isso que eu contar - virei me para Tomás porque Celina já não estava prestando atenção - Ontem à noite eu vi uma corça, ela estava em frente de casa, mas ela me viu e saiu correndo, acredito que mais alguém tenha chegado aqui, para trazer os animais!
-Ou talvez eles tenham vindo sozinho - disse ele dando ombros - Você nunca estudou a origem da Terra? Os animais aparecem logo quando veem o lugar propenso e habitável!
-Mas estamos em um lugar mágico! Você trouxe som e Celine a água, eu trouxe vegetação, tenho certeza que os animais também foram trazidos por alguém!
- Eu estou sentindo novas vibrações, pode ser de animais ou de uma pessoa.
-Coloque uma música, tenho certeza que essa pessoa vai ficar curiosa e vai se aproximar.
-Podemos tentar!
Conseguimos trazer a atenção de Celina de novo e contamos que achávamos que alguém trouxe os animais. Ela disse que era possível sim e concordou que ficaríamos dançando e agindo como se fosse uma festa, a pessoa com certeza se aproximaria.
Depois de algum tempo, ouvimos barulhos de passos vindo de uma direção do bosque. Sorrimos e pensamos que nosso plano estava dando certo, porém notamos que os passos estavam violentos. Tomás parou a música e ficamos atentos olhando para onde vinha o som, de repente ouvimos um rugido e logo apareceu um urso pardo correndo na nossa direção. Por instinto nós três começamos a gritar sem parar e corremos na direção oposta do urso, mas ele era muito rápido e estava nos alcançando, ou melhor, me alcançando. Eu era mais baixa e mais gordinha, não corria como Celina muito menos como Tomás que na verdade estava flutuando a nossa frente:
 -TOMÁS! TOCA UMA MÚSICA PARA ACALMAR ESSA FERA!
-Eu tenho cara de domador de animais?
Celina continuava gritando a minha frente sem olhar para trás, apenas lançando rajadas de água tentando atrasar o urso, eu fazia aparecer algumas arbustos no caminho, mas isso não o impedia de estar mais próximo de mim. Estava quase sentindo o bafo do urso em minhas costas, quando percebi que algo caiu entre mim e o bicho e o animal parou de correr. Eu consegui escapar.
Uns poucos metros à frente eu me virei e vi um rapaz de frente para o urso, estava com as pernas afastadas e percebi que seu peito estava estufado e a cabeça erguida, em posição de imponência. Por ele estar de costas não sei exatamente o que estava fazendo, mas vi aos poucos o urso perder a fúria e se sentar manso. O garoto se aproximou e fez um cafuné na orelha do animal, ele olhou para nós com um sorriso cínico, eu e Tomás estávamos o olhando boquiabertos, depois percebi Celina se aproximar lentamente, ela já estava a muitos metros à frente quando percebeu que algo tinha parado o urso. 
-Ela só estava um pouco irritada com a farra que estavam fazendo, mas já disse que vocês são inofensivos.
-Quem disse? - Celina deu um passo à frente com a mão erguida em ataque e o animal rugiu novamente
-Ei! Ei! - O garoto levantou o braço como para acalmar Celina - Se preferir posso falar para ela que vocês vão atacá-la.
-Não! - disse eu e Tomás uníssono - Somos realmente da paz - demos um sorriso amarelo
Celina olhou para mim depois para Tomás e abaixou o braço que estava em posição de ataque
-Quem é você? - Celina o intimidou novamente 
-Sou Kauã - ele olhou ela de cima abaixo - belo vestido!
Celina olhou para si, ela estava ainda com o mesmo vestido de quando a conheci, aliás, todos nós estávamos com a mesma roupa, porque era óbvio que ali não existia lojas de roupas e também não sentimos a necessidade de comprar novas roupas. O vestido dela era longo mas bem fino, de um tom azul claro, talvez por estar molhado, também marcava seu corpo, acho que por vergonha ela se escondeu atrás de Tomás. Resolvi me comunicar, porque Celina era muito afrontosa e ela não ia conseguir nada agindo daquela maneira, e também não ia deixar Tomás porque ele é muito debochado e imaginei que talvez os dois agiriam como dois machos alfas.
-Eu sou Andressa, ele é Tomás e ela Celina!
-Muito bom conhecer vocês, aliás, parecem que estão aqui a mais tempo que eu, visto o estados das suas roupas, que lugar é esse? 
-Imagino que você tenha achado um certo livro na biblioteca? - eu sorri
-Sim, por acaso eu estava na biblioteca fazendo um favor a minha irmã, quando ouvi um barulho nas últimas prateleiras e fui de curiosidade ver o que era. Tinha um livro aberto no cão e vários outros ao redor e de repente tudo ficou claro e de repente me vi aqui!
-Você é uma pessoa bem carismática, contou tudo isso para a gente assim que nos conheceu - disse Tomás admirado - Para Celine me contar demorou um bom tempo, e a doidinha aqui - ele colocou a mão no meu ombro - Cismava que estava em um coma e éramos frutos da imaginação dela.
- Bem, eu não acabei de chegar e estava me sentindo bem solitário, quando vi pessoas, eu me empolguei.
A ursa ainda estava sentada atrás dele comendo umas frutinhas que tinha em um galho. 
-Você que trouxe os animais?
-Eu? Claro que não, aqui é uma floresta e é óbvio que existe animais! - ele riu cético
-Fala a verdade, você fala com eles?
-Ok! Eu percebi que eles me entendiam quando essa lindona me achou e eu disse para ela ter calma e ela me respondeu que estava calma e só estava procurando um lugar para dormir, eu achei estranho, mas logo entendi como funcionava, por isso quis saber que lugar é esse, porque os animais me entendem…
-Porque você é quem os trouxe! - eu o interrompi e ele me olhou espantado 
-Como assim eu os trouxe? Eu vim sozinho…
-Sim, você estava na biblioteca e viu o livro, blá, blá, blá - Celine o interrompeu impaciente - Acontece que aqui não tinha animais, eu cheguei aqui e nem água tinha, eu trouxe, logo veio Tomás e trouxe o som e a música e então Andressa trouxe a vegetação, ficamos um bons dias sem ver passarinhos, peixes e … ursos.
-Cada um aqui tem um dom - eu continuei - Como se aqui fosse um outro mundo em que tudo tivesse que ser criado do começo, e cada um de nós é responsável por isso - sorri já que Kauã ficou mudo com olhar cético. 
-Há quanto tempo estão aqui? 
-Não sabemos, eu comecei a contar quando cheguei mas perdi onde eu anotei.
-Vocês conversam sobre o que? - ele disse meio irritado - É muitos simples descobrir a quanto tempo estão aqui, é só cada um dizer em que dia encontrou o livro!
-Caramba! Por que não pensamos nisso?
-Eu vim para cá dia 25 de junho de 2020 - disse Celine
-Eu também encontrei o livro nesse mesmo dia! - Disse Tomás surpreso e depois nós quatros nos olhamos surpresos. Já não precisam dizer mais nada.

VI

Nos reunimos a beira do pequeno riacho da Celina, estamos comendo alguma frutinhas que colhi de uma das árvores. Descobrimos que o tempo não passou na nossa vida real, por mais que sentíssemos que foram meses, isso significava que a qualquer momento que voltássemos era como se nunca tivéssemos ido embora. Nossas famílias e amigos não estavam sentindo saudades porque não tinha passado o tempo para isso. Ao mesmo tempo que fiquei aliviada, me senti um pouco decepcionada, como eu saberia que Raquel ou meus pais sentiriam minha falta caso eu sumisse? Kauã estava decidido que não queria ficar ali, era compreensível porque ele não era um garoto de ficar em um mundo mágico onde não estava a turma dele, Tomás pareceu indiferente e Celine se animou com a ideia de voltar para casa e continuar sua vida de onde tinha parado: fazer uma faculdade e construir sua carreira como engenheira.
-Vocês estão brincando! Nunca procuraram a saída? 
-Nunca procuramos porque parece óbvio. Se caímos aqui, só poderíamos voltar se fossemos em direção ao céu! - disse Tomás
Nós quatro olhamos para o céu no mesmo momento, não parecia haver nenhum portal, a não ser que…
-Será o sol o portal?
-Por que o sol? 
-Quando caímos aqui, foi através de uma luz intensa, a única coisa por aqui que brilha tanto quanto aquela luz, é o sol! - eu concluí 
-É para isso que serve as nerdizinhas! - Kauã passou a mão na minha cabeça como se eu fosse uma criança prodígio.
-Tudo bem, mas se for o sol, como chegamos até ele? - perguntou Celina
-Acho que é como o sol, não é de fato o sol, então conseguiríamos sair!
-Bem, de qualquer forma, isso terá que ficar para amanhã, porque o sol já se foi!
O céu estava alaranjado por causa da claridade dos raios, mas de fato o sol já tinha se posto. Dei um suspiro, e me levantei:
-Bem, cada um tem uma missão para essa noite: pensar em uma forma de chegar ao suposto sol! 
Me retirei sem esperar respostas, e percebi que cada um seguia seu caminho também, eu não sabia exatamente onde era o recanto de cada um, mas isso não faria diferença, iríamos voltar as nossas vidas.
Fiquei durante a noite apenas olhando o céu, estava estrelado, muito estrelado, parecia que realmente eu estava no próprio universo. Claro, ali não existia poluição. Ouvi algumas corujas piarem e sorri, era tão diferente agora com as vozes dos animais. Mas tudo isso acabaria e eu voltaria para minha vida agitada na cidade, ou melhor, para a minha vida nos livros que lia no meu dia a dia. Percebi que estava clareando o céu, estava amanhecendo e eu não tinha dormido nada, mas nem fazia diferença, não sentíamos sono nesse lugar. 
Me levantei disposta e caminhei até nosso ponto de encontro: o riacho da Celina. Me aproximei e vi que os três já estavam lá e sorriam. Fiquei enciumada por não saber qual era o motivo e me senti excluída, mas disfarcei quando eles me viram:
-Está aí!
-Andressa, cada um de nós já sabemos como chegar ao sol!
-Eu já flutuo normalmente, para mim não será problema! - Disse Tomás 
-Eu pedirei ajuda de alguns pássaros para me levar, precisará de muitos, afinal não sou leve, mas já conversei com eles - segui seu olhar e vi um monte de flamingos
-Eu posso fazer com que a água se condense em uma nuvem e me leve até o sol
Vi que todos me olhavam empolgados para minha resposta, mas fiquei uns longos minutos em pânico porque apesar de passar a noite em claro, não pensei em nada.
-Você controla os vegetais - disse Kauã
-Pode fazer uma árvore crescer até onde for necessário - disse Celina
-Não sei se uma árvore pode crescer o suficiente para o sol… - senti que Tomás disse isso para eu me sentir inferior, mas rapidamente pensei em uma resposta.
-Não se estiver aqui no nível em que estamos, mas irei até o topo daquela montanha - e apontei enquanto os três olhavam em direção a minha mão.
- Ótimo! Vamos todos juntos para lá - disse Kauã - Celine vai segundo o curso do rio, Tomás vai com os ventos e eu te empresto um cavalo - ele sorriu com simpatia para mim
-Tudo bem! - sorri de volta, apesar de que achei que o meu sorriso era muito mais do que um agradecimento. 
Por mais rápido que fôssemos, a montanha estavam bem distante, e conforme avançávamos a natureza se criava, era como uma tela sendo pintada com pincel mágico: o riacho ia avançando, a vegetação e alguns animais que fugiam ou nos observavam quando passávamos, também acompanhavam a criação. Desaceleramos um pouco, percebemos que não chegaríamos a tempo do sol estar sobre nossas cabeças, porque ele já estava, além de que ali não existia tempo, então não teria problemas passar mais um dia:
-Vamos descansar um pouco? - sugeriu Celina
-Eu concordo, apesar de que não fizemos esforços nenhum, o Jony e Samira estão casados.
-Quem é Jony e Samira? - perguntou Tomás flutuando em nossa direção
-Os cavalos!
-Agora o malandrinho da cidade entende de cavalos.
-Não Einstein, como você mesmo disse, temos habilidades aqui, e eu me comunico com os animais.
Sentei em uma rocha a beira do rio e Celina sentou em uma que estava no rio. Os meninos se aproximaram e sentaram cada um de um lado.
-O que faremos enquanto os pobres animais descansam?
-Podemos comer! - eu sugeri
-Ótimo, preciso estimular minhas papilas gustativas - disse Tomás se levantando - Vem comigo pegar as frutas, Celina?
Ela saiu da água e os dois adentraram na floresta. Eu fiquei com Kauã em um silêncio em que conseguíamos apenas ouvir a água do rio seguir seu curso e algumas aves piando escondidas nas árvores. Olhei pela lateral do meu olho para ele para que não percebesse que eu o estava olhando, que estava deitado na grama de olhos fechados, parecia estar aproveitando o calor do sol.
-Você parece gostar daqui, quer mesmo ir embora? Sabe, o tempo não passa e a qualquer momento que voltar, é como se nada tivesse acontecido.
Ele abriu os olhos, levantou o tronco mas continuava deitado, agora olhava para mim com um sorriso que deixou minhas bochechas com rubor.
-O que eu faria aqui? Aqui não tem meus amigos, não tem o meu skate, não tem games - ele me encarou, agora estava sério - Você quer ficar aqui?
-Eu não fazia muita coisa no mundo real, só tenho uma amiga, a Raquel, e passo a maior parte do meu tempo lendo - suspirei e encarei a água sem realmente estar olhando para ela - Apesar de não termos muito o que fazer aqui, eu me senti bem na presença de Tomás e Celina, o que vivemos aqui foi real e divertido.
-Entendo, mas isso não precisa acabar quando voltarem para vida real, vocês podem continuar amigos.
-Não será a mesma coisa, Celina está focada em entrar na faculdade, Tomás leva uma vida hipster e sei lá, ele é mais velho, não acho que queira passar um tempo com uma adolescente que gosta de ficar lendo. 
-Ah - ele levantou e veio na minha direção e passou o braço pelo meu ombro e acariciou meu cabelo - não fica assim pequena, você pode ficar aqui.
-Sozinha? 
Antes dele dizer alguma coisa Tomás e Celina voltaram com os braços cheio de frutas e rindo. Sentaram perto da gente e colocou na nossa frente.
-Que fofo vocês dois! - disse Celina
-Eu estava pensando - comecei a falar para eles não focarem no fato de Kauã estar acariciando minha cabeça - Perceberam como a floresta, o rio e os animais se expandiram muito mais do que fizemos enquanto estivemos aqui?
-Sim - disse Tomás como se falasse o óbvio - Começamos, mas a natureza se encarregou de se propagar sozinha.
-Acho que é mais um motivo para voltarmos nossas vidas - disse Kauã enquanto mastigava de boca aberta
-Seu mal educado! - disse Celina o repreendendo e rindo ao mesmo tempo
Passamos um tempo ali, os cavalos estavam pastando logo atrás da gente e ficamos contando o que fazíamos na vida, eles na verdade, porque minha vida não tinha nada de especial, o que eu podia contar era enredos dos livros que li. O sol já tinha ido embora, e estávamos sob o céu estrelado de novo. Deitamos os quatro na grama, e ficamos a observar o céu enquanto ainda falávamos sobre sentimentos e objetivos.
-Acho que é uma boa hora de você voltar para a vida, Andressa, e mudar sua rotina, fazer algo mais audacioso
-Concordo - disse Celina, ela estava deitada do meu lado, e virou na minha direção e começou a acariciar meus cabelos, senti minhas bochechas ficarem quentes - Kauã só é um ano mais velho que você, e já fez tantas coisas
-Você poderia ensinar algumas coisas a ela Kauã - provocou Tomás
-Quem sabe! 
Depois disso, ficamos calados ainda observando o céu, e senti uma brisa arrepiar meu corpo.
-Você está sentindo frio? - perguntou Celina
-Por quê?
Ela sorriu e olhou para meu braço que estava todo arrepiado. Eu sorri de volta para ela que não tinha como dizer que não. Ela se aproximou de mim, senti seu corpo quente do meu lado direito, ela passou o braço na minha barriga e apoiou a cabeça no meu ombro.
-Ela está com frio, Kauã!
Sem dizer nada, ele se aproximou do meu lado esquerdo e passou o braço por cima de mim, como ele era mais alto, eu acabei apoiando a cabeça em seu ombro.
-Também quero ficar aquecido!
Provavelmente ele abraçou Celina, porque ele estava do lado direito dela. Depois disso apenas ouvi a respiração regular de cada um, não sei se dormiam, mas me senti acolhida e relaxei, em alguns segundos adormeci.

VII

Senti o calor do sol na minha pele e abri os olhos lentamente por causa da claridade. Celine ainda estava sobre mim e Kauã também, parece que nem se mexeram durante a noite, apenas perguntei:
-Estão acordados?
-Sim! - disse os três juntos
Eles se afastaram de mim e levantaram agindo como se o que acabávamos de fazer era muito natural. Apenas sorri. Ótimo, voltaríamos para nossa vida real, e eu agiria como se nada daquilo tivesse acontecido. Não veria mais nenhum deles, mesmo que trocássemos números ou seguíssemos um ao outros nas redes sociais, nada chegaria perto da intimidade que tivemos essa noite. E isso seria o mais perto de algo íntimo que eu teria com um garoto por pelo menos uns 10 anos.
Celina foi para água, Tomás começou a flutuar e Kauã montou o cavalo e esperou que eu subisse no outro. E lá estávamos nós a caminho da montanha. Não era uma montanha difícil como vemos em filmes de escaladas, e subimos - exceto Tomás - escalado cada vez mais alto a montanha. Não tínhamos corda, mas Tomás se comprometeu a segurar se alguém escorregasse. Demorou um tempo até que chegamos no topo. Durante o trajeto não falamos nada, só de vez enquanto uns "cuidado" ou "está tudo bem" ou então "estamos chegando, só mais um pouco". 
O Sol não estava a pino ainda quando chegamos no topo, estávamos cansados e ficamos sentados observando agora do alto o lugar onde estávamos: era lindo. Tinha árvores de diversas espécies, e víamos o primeiro lago cristalino da Celina. O Céu era azul celeste, víamos bandos de pássaros voando, os outros animais era difícil devido a distância que estávamos, mas sabíamos que estavam lá, vivendo. 
-Vou sentir saudades. - disse Celina
-Você não precisa ir.
-Não preciso, mas quero! Quero fazer a faculdade, conhecer pessoas…
-E eu? - percebi que apesar dele estar rindo, Tomás sentiu medo de ser esquecido.
-E você? Espero que comece uma faculdade como eu, e assim poderemos ficar juntos!
-Você é muito exigente!
-Aliás, você ficou nos devendo de contar sobre como achou o livro, aventureiro!
-Nada demais - ele riu como se contasse uma piada - Fiz esse mistério para deixarem curiosas, mas na verdade, minha mãe trabalha lá…
-Teresa? - eu o interrompi
-Ela mesmo, e de vez em quando, quando não estou viajando, ajudo ela na organização da biblioteca, e bem nesse dia, achei o livro.
-Agora que me falou, vejo semelhança entre você e dona Teresa - eu sorri e ele apenas sorriu de volta.
-Será que tudo o que fizemos por esse lugar continuará ou assim que sairmos, voltará a ser o lugar antigo?
-Nós veremos - disse Kauã - mas qual é a diferença? Não estaremos mais aqui.
-É só que tive um apego aqui - Celina sorriu sem graça
O Sol agora estava mais alto, e nós quatros nós levantamos.
-É a nossa deixa, quem vai primeiro?
-Eu! - nesse momento Tomás começou a flutuar tão rápido, era como se voasse, mas ele não tinha asas, e logo desapareceu, ou a claridade não deixou a gente ver onde ele estava.
Um bando de pássaros rosas chegou voando e Kauã subiu em um e apoiou em dois ao lado, depois subiram para o sol. Eu e Celina esperamos um pouco e depois vimos os pássaros voltarem sem nada sobre eles.
-Acho que essa é a prova de que o sol realmente é o portal - Celina sorriu para mim
-É, e também, visto que Tomás saiu e continuamos escutando o som e os animais continuam mesmo sem Kauã, acho que esse lugar se manterá sozinho.
E então a água da nascente começou a mover em direção a ela, formou nuvens pequenas, e depois ela subiu - como se fosse possível, mas ali as coisas funcionam com magia, então foi possível. Logo depois a água caiu como chuva sobre as árvores que estavam lá. Agora era minha vez: pensei na árvore mais alta que conhecia: a sequoia, toquei o chão e logo vi nascer um broto que logo tornou-se muda, e foi crescendo, rapidamente subi e continuei a influenciando para continuar subindo, parecia que o Sol ainda estava muito longe quando de repente me senti ser sugada e tudo ficou muito claro, dessa vez me contive e não gritei, e depois senti bater em algo duro: era o chão da biblioteca.
Celina, Tomás e Kauã estavam me olhando ansiosos:
-Você conseguiu! - Celina sussurrou enquanto me abraçava
-Todos nós - eu disse, apesar de agora estar de volta a minha vida, eu me sentia vazia, porque voltaria a minha vida sem graça, mas era a coisa certa a se fazer, eu não ficaria naquele mundo mágico sozinha esperando até outra pessoa cair nele.
-Gente, eu sei que fui um pouco irritante, principalmente contigo - Tomás disse me abraçando - mas eu gostei muito de toda essa aventura, jamais esquecerei vocês!
-Won seu fofo! - Celina abraçou ele - Obrigada pela experiência que me deram, eu estava bem chateada no começo, mas depois tudo ficou muito bom, sentirei saudades, menos de você - ela disse apertando a bochecha de Tomás - você virá comigo para começar uma faculdade!
-Adeus! - disse os dois se afastando enquanto trocavam carícias para o mundo em que eu jamais os veria novamente.
Olhei para Kauã que me olhava sorrindo com se eu tivesse contado uma piada. Eu fiquei seria e peguei o livro caído no chão, o abri com cuidado e vi a primeira página escrita:
"Um lugar remoto, onde não há vida e somente o solo árido e uma pequena lagoa. Não há nenhum som, o lugar é morto, que aos poucos foi se tornando completo. Esse lugar já havia sido esquecido, mas criou-se vida, tornou-se belo, e tudo o que imaginar de natural e pura há. 
O que é mais importante desse lugar, é o amor que nasceu ali…"
Olhei para Kauã que lia por cima do meu ombro e perguntei:
-Esse amor será que refere-se a Celina e Tomás?
-Acho que não, refere-se a amizade que cresceu ali, com todos nós.
Refleti um pouco, e depois o coloquei de volta da estante, depois arrumei meu cabelo e o olhei:
-Adeus? – sorri. Era óbvio que eu não queria que acabasse ali, mas também não queria impor nada a ele, e com certeza eu não o pediria para ficar.
-Ná! - ele passou o braço sobre meu ombro me fazendo o acompanhar para fora da biblioteca - Você vem comigo, está na hora de conhecer o mundo fora dos livros!

Texto: Lucy Batista
Imagem: Disponível no site Espaço Cognita

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